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Os Navios e as Técnicas Náuticas Atlânticas nos Séculos XV e XVI: Os Pilares da Estratégia 3C

3. As Técnicas Náuticas                                                            Contra-almirante António Silva Ribeiro

 

Os avanços registados nas técnicas náuticas entre 1400 e 1550, estão na base da relevância marítima de Portugal neste período. Tais progressos abrangeram os instrumentos, os processos e os documentos náuticos, que constituíram o segundo pilar da estratégia 3C, adoptada por Portugal para conhecer, comerciar e combater no mar e a partir do mar, entre os séculos XV e XVI. Adquiriam especial relevância, porque viabilizaram uma representação geográfica da Terra mais precisa e conferiram maior rigor e segurança à navegação.

 

Embora inicialmente rudimentar, a agulha magnética veio revolucionar a náutica. Com efeito, até ao seu aparecimento a navegação era feita à vista da costa, de cabo a cabo - daí o termo cabotagem - guiando as embarcações pelos astros, pelo voo das aves ou pela direcção do vento e das ondas. Como a agulha magnética possibilitava seguir um rumo de forma consistente, os navios puderam afastar-se da costa para seguir o trajecto mais curto entre dois portos, ou, em alternativa, beneficiar dos ventos mais favoráveis para demandar o lugar de destino. Cumpre igualmente recordar que foi a utilização da agulha magnética que esteve na origem da mudança do ponto cardeal usado como referência nas cartas náuticas. Com efeito, o Levante, o Leste ou o Oriente na parte superior da carta, simbolizado pela cruz que assinalava a Terra Santa, foi sendo progressivamente substituído pelo Norte, Setentrião ou Bóreas, assinalado pela flor-de-lis. Esta simples rotação de 90 graus, trouxe consigo uma verdadeira revolução nas mentalidades, na medida em que os pilotos deixaram de se «orientar» pela linha de costa, passando a «nortear» o caminho do navio pela agulha e linhas de rumo magnéticas dispostas na carta.

 

A eficácia da agulha magnética aumentou notavelmente quando passou a ser suportada por um fino pináculo vertical, no qual se apoiava o centro da rosa-dos-ventos, gravada em cartão, em cuja face superior se encontrava inscrito um sinal em forma de flor-de-lis a indicar o Norte e uma cruz a marcar o Oriente (Terra Santa). Na base deste cartão circular encontravam-se dispostos dois ferros, alinhados com a direcção Norte-Sul gravada na superfície oposta. Como estes ferros não eram ímanes permanentes, necessitavam de ser periodicamente magnetizados, utilizando um íman natural, a que se dava o nome de pedra de cevar, designando, assim, a operação destinada a conferir-lhes magnetização.

 

Dos oito ventos ou rumos das primitivas rosas-dos-ventos, que indicavam os pontos cardeais e os inter-cardiais ou quadrantais, passou-se, posteriormente, aos 16 rumos, que referenciavam os pontos colaterais ou meias partidas, tendo-se generalizado, já no século XV, as agulhas de 32 rumos ou quartas. Da divisão dos 360 graus pelos 32 intervalos, resultaram outros tantos ângulos de 11,25 graus, ou 11º 15’ (onze graus e quinze minutos), a que se deu o nome de quartas, designação ainda hoje em voga entre os pescadores portugueses. Como a definição do rumo não podia ser superior a meia quarta, que é, grosso modo, metade do valor da escala, o erro mínimo cometido no governo do navio era, em teoria, da ordem dos 5 a 6 graus. No entanto, as guinadas dos homens do leme a um e outro bordo, com o objectivo de manter o navio no rumo, compensavam, de certa forma, os erros cometidos ao longo da singradura.

A precisão da leitura dos rumos a bordo aumentou bastante quando, no século XVI, a agulha passou a estar instalada sobre uma suspensão com dois eixos de liberdade, destinada a compensar os efeitos do balanço do navio. Muito embora a utilização deste expediente de compensação do balanço já existisse, pelo menos desde finais do século XV, encontrando-se referido no Tratado da Agulha de Marear de João de Lisboa (1514), ficou conhecido como «suspensão Cardan», pelo facto do lombardo Gerolamo Cardano (1501-1576) ter publicado um estudo relativo às suas propriedades e aplicações a bordo, designadamente em agulhas magnéticas (Fig. 3), ampulhetas e candeeiros.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 3 - Agulha magnética de José da Costa Miranda (1711)

 

Outro progresso relevante para as técnicas náuticas foi o aparecimento da carta-portulano, que facultou aos pilotos uma representação gráfica, objectiva e prática, do espaço geográfico em que navegavam, ao mesmo tempo que possibilitou o traçado das rotas por onde se podia navegar em segurança entre portos, além da determinação da posição do navio no mar. Com esta inovação cartográfica, os livros portulanos, existentes desde a Antiguidade, passaram a constituir um complemento da carta-portulano, tendo-se perpetuado até aos nossos dias sob a designação de roteiros.

 

Inicialmente, a carta-portulano consistia mais numa ajuda à navegação, para que o piloto se pudesse orientar no caminho a seguir pela agulha magnética, do que propriamente para determinar a posição do navio num dado momento. Mais tarde, foi incluída na carta-portulano uma escala de distâncias graduada em milhas, designada por tronco das léguas, que permitiu a medição e marcação de distâncias. Estas cartas não apresentavam ainda paralelos nem meridianos, mas apenas uma rede de rectas direccionais ou rumos magnéticos, que formavam uma teia resultante do prolongamento das linhas de rumo originadas a partir de uma rosa-dos-ventos central, e que se entrecruzavam com os de outras rosas-dos-ventos dispostas ao redor da primeira. As linhas de rumo que assinalavam o Norte magnético, eram representadas verticalmente na superfície da carta, sendo paralelas entre si, sem observarem o requisito de convergência dos meridianos (Fig. 4).

 

O rumo, entre o ponto de partida e o ponto de chegada, era obtido a partir das linhas existentes nas cartas rumadas, enquanto a distância era deduzida pelo piloto, tendo em conta a sua avaliação relativamente ao caminho percorrido pelo navio, sendo implantada na carta depois de medida no tronco de léguas a correspondente amplitude do compasso. Obtinha-se, assim, o chamado ponto de fantasia, também conhecido como ponto estimado, de estimativa ou de marinharia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 4 - Rede de linhas de rumo, rosas-dos-ventos e tronco das léguas numa carta-portulano

 

Como a carta-portulano tinha implantados os pontos notáveis do litoral, dava uma imagem de considerável realismo da geografia costeira, pelo que o piloto dispunha de uma visão razoável da posição do navio relativamente à costa, podendo, assim, decidir sobre as manobras ulteriores, necessárias para demandar o porto de destino. No entanto, devido às reduzidas dimensões das cartas-portulano e à vastidão das regiões representadas, não era possível um traçado detalhado da costa, facto que obstava a uma melhor discriminação e representação dos perigos para a navegação. Daí que estas insuficiências cartográficas tenham continuado a ser colmatadas pelas informações complementares incluídas nos livros portulanos. Importa no entanto salientar, que as cartas-portulano foram, ao longo do tempo, submetidas a sucessivos aperfeiçoamentos e complementos, tal como hoje sucede com a cartografia electrónica. Estes melhoramentos resultaram do aumento da frequência das viagens marítimas, que permitiram recolher informação geo-hidrográfica mais rigorosa e actual, utilizada pelos cartógrafos para corrigir as incertezas e deficiências dos seus trabalhos, ao mesmo tempo que adicionavam novas áreas geográficas entretanto exploradas ou descobertas.

 

A prova de que as cartas eram elaboradas tendo em conta a progressão das navegações, reside no facto dos respectivos contornos terem evoluído ao ritmo a que se realizavam as viagens marítimas dos portugueses. Este facto é especialmente evidente na carta de Henricus Martellus, de que existem várias cópias datáveis de 1489 a 1492. Como já apresenta a passagem Sul de África, este mapa-mundo só pode ter sido desenhado a partir de uma carta portuguesa ou de informação resultante da expedição de Bartolomeu Dias (1487-1488), porque até então os oceanos Atlântico e Índico surgiam na cartografia como mares interiores.

 

A prova de que as cartas eram elaboradas tendo em conta a progressão das navegações, reside no facto dos respectivos contornos terem evoluído ao ritmo a que se realizavam as viagens marítimas dos portugueses. Este facto é especialmente evidente na carta de Henricus Martellus, de que existem várias cópias datáveis de 1489 a 1492. Como já apresenta a passagem Sul de África, este mapa-mundo só pode ter sido desenhado a partir de uma carta portuguesa ou de informação resultante da expedição de Bartolomeu Dias (1487-1488), porque até então os oceanos Atlântico e Índico surgiam na cartografia como mares interiores.

 

Pelo facto de os navios serem obrigados a navegar segundo rumos quebrados, de forma a tirarem partido do vento, ora se afastavam, ora se aproximavam do rumo directo entre o ponto de partida e o ponto de destino. Nestas circunstâncias, para garantir algum controlo relativamente ao caminho percorrido ao longo da derrota traçada na carta portulano, os pilotos necessitavam de saber, a cada alteração de rumo, quanto se afastavam (alargar), ou quanto ganhavam sobre o rumo directo (avanço de retorno). Para que este problema pudesse ser resolvido pelos pilotos, os matemáticos conceberam a toleta de marteloio, um método de origem mediterrânica, apresentado sob a forma de ábaco geométrico ou de tabulado, cuja versão mais antiga se encontra inserida no Atlas de Andrea Bianco (1436). Através da toleta de marteloio, o piloto deduzia os avanços e os retornos do navio em relação ao rumo directo para o lugar de destino, pelo que conhecia, a cada passo, a sua posição relativamente à rota indicada por aquele rumo. Mais tarde, a náutica portuguesa substituiu o método da toleta de marteloio pelo regimento das léguas, melhor adaptado à técnica de navegação por latitudes, que integra a grande maioria dos textos marítimos do século XVI.

 

Sendo os rumos magnéticos das agulhas de marear determinantes na representação cartográfica das costas nas cartas-portulano, a posição de cada lugar era afectada pela declinação magnética. Consequentemente, a geografia traçada nas cartas-portulano apresenta uma distorção geral, mais ou menos pronunciada, em função do valor da declinação magnética vigente à altura da compilação da carta, devido à não homogeneidade do magnetismo terrestre nos diferentes locais do globo. É curioso notar que os pilotos, embora desconhecendo as causas do fenómeno então designado por variação da agulha7, sabiam da existência da declinação magnética, conhecida como nordestear ou noroestear da agulha. Com a repetição das viagens nas mesmas regiões, obtiveram uma noção do seu reflexo no rumo do navio e aplicaram a devida correcção para aterrar no ponto de destino. Por isso, seguiram o rumo que a prática marinheira recomendava e não o que a carta-portulano indicava.

 

Nas cartas náuticas, a primeira tentativa para corrigir a diferença entre o rumo navegado e o rumo verdadeiro, resultante do reconhecimento da variação da agulha, leia-se declinação magnética, foi realizada por Pedro Reinel, na sua carta atlântica de c. 1504 (Fig. 5). Nela traçou, junto à Terra Nova, uma pequena escala auxiliar de latitudes, inclinada no sentido contrário ao da variação da agulha. Pela informação recolhida pelos pilotos que demandavam aquelas paragens, aquele cartógrafo sabia que, junto à costa da América do Norte, se registavam fortes diferenças entre as indicações da agulha e os rumos verdadeiros, facto que produzia grandes deformações nos contornos das linhas costeiras da Terra Nova, pelo que não se harmonizavam com a escala geral de latitudes traçada na carta sobre o Atlântico. Para minimizar esses erros, desenvolveu a escala oblíqua de latitudes, que indicava o norte geográfico naquela região, e pela qual se deviam guiar os navegadores. Se admitirmos que as agulhas magnéticas de princípios do século XVI estavam isentas de atrito no ponto de giro, mas também de influências alheias ao magnetismo terrestre da zona, o ângulo formado pela direcção do meridiano central da carta e a escala oblíqua de latitudes correspondia ao valor da declinação magnética naquela época. A solução de Pedro Reinel foi adoptada por outros cartógrafos, em geral portugueses, até ao último quartel do século XVII. De referir, que a carta de c. 1504 também possui inscrita uma escala geral de latitudes, sendo a segunda mais antiga conhecida onde tal se verifica.

 

Relativamente aos efeitos de declinação magnética nas cartas-portulano, interessa ainda acrescentar que, em 1514, João de Lisboa, no Tratado da Agulha de Marear, afirma claramente que as cartas-portulano não serviam para a náutica astronómica praticada pelos pilotos portugueses, que andavam sempre a corrigir as agulhas magnéticas, de maneira que a ponta Norte se dirigisse para o Norte geográfico no lugar de observação, por acharem «todas as cartas falsas por uma quarta ou duas». Refere-se aqui à torção decorrente da declinação magnética, que induzia uma diferença entre os rumos verdadeiros na superfície da Terra e os rumos magnéticos usados na construção das cartas. Por isso, quando João de Lisboa afirmou que, enquanto não fosse corrigida a cartografia se deveria navegar pela «costumada», estava a referir-se aos rumos magnéticos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 5 - Carta de Pedro Reinel com escala de latitudes inclinada (c. 1504)

 

Com a realização das viagens atlânticas sem avistar terra durante várias semanas, como sucedia aos navegadores portugueses no regresso das costas da Guiné e da Mina, a navegação do rumo e da estima revelou as suas insuficiências para fornecer, com um mínimo de precisão, a posição do navio. Surgiu, então, em condições que se desconhecem, mas seguramente no tempo do Infante D. Henrique, a primeira fase da náutica astronómica portuguesa, que consistiu na assídua medição da altura da estrela Polar e de outras estrelas, nas suas passagens meridianas, utilizando o quadrante. Comparando cada altura com a que a mesma estrela atingia em Lisboa, os pilotos ficavam com uma ideia aproximada do número de léguas que tinham de navegar, segundo um meridiano, para atingir o paralelo da capital do reino. Esta prática náutica foi designada por navegação de (ou por) alturas.

 

A náutica astronómica portuguesa evoluiu para uma segunda fase, quando os pilotos passaram a utilizar as observações da estrela Polar, em detrimento de outras estrelas, com as correcções constantes estabelecidas no regimento do Norte. Além das duas passagens meridianas, foram igualmente escolhidas outras seis posições da estrela Polar, no seu círculo diurno aparente. Estas oito alturas foram registadas em regimentos, dos quais resultaram, pela maior facilidade de utilização, as disposições gráficas que lhe equivaliam. Eram designadas pelos marinheiros como rodas da Polar e tinham a forma de uma coroa circular (Fig. 6). Na extremidade de cada raio encontrava-se inscrita a correcção a aplicar às alturas, em função da posição das guardas da Ursa Menor no momento da observação.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 6 - Roda da Polar do Livro de Marinharia de João de Lisboa, com as correcções constantes a aplicar à altura daquela estrela

 

Estas duas fases da náutica astronómica, sendo relevantes pelo acrescido rigor que trouxeram ao controlo da progressão dos navios no sentido Sul-Norte, quando pretendiam demandar a costa portuguesa, não tiveram, aparentemente, reflexos na cartografia portulana, pois não permitiam, ainda, o cálculo de qualquer coordenada geográfica. Nestas circunstâncias, a cartografia náutica portuguesa continuou a respeitar os princípios e as técnicas importadas da náutica mediterrânica, baseada no rumo magnético e no caminho estimado (distância) pelos pilotos, sem recorrer a um sistema de projecção. Era, por isso, uma cartografia sem grande rigor, que foi posta em causa por Diogo Gomes em 1462, quando comparou as alturas da estrela Polar na Guiné e em Lisboa, tomadas com o quadrante, considerando que a posição assim obtida era melhor do que a carteada. Por outras palavras, aquele navegador reconheceu que a carta-portulano não respondia cabalmente às exigências da náutica astronómica, pois não traduzia fielmente a geografia terrestre.

 

A representação das oito posições da estrela Polar numa roda, deve ter sido determinante para, poucos anos depois das críticas de Diogo Gomes, mas ainda na década de 60 do século XV, terem começado as observações astronómicas para determinação da latitude a bordo (paralelo do lugar), a partir da altura daquela estrela, corrigida da distância angular ao Pólo Norte. De forma muito simplificada, pode dizer-se que a terceira fase de modernização da náutica astronómica portuguesa, consistiu na medição da altura da estrela Polar, de modo a chegar à latitude do lugar, pela aplicação de uma simples correcção aditiva ou subtractiva, apresentada no regimento do Norte ou da Polar. Desta forma, a posição do navio passou a ser dada pelo ponto de esquadria, que associava a latitude calculada, o rumo fornecido pela agulha e a distância percorrida pelo navio e estimada pelo piloto. Todavia, em alto mar o valor da latitude era o único dado que se podia obter com certo rigor, uma vez que a distância resultava da avaliação empírica do piloto, enquanto o rumo não era suficientemente fiável, pelo facto de não ser possível quantificar o abatimento do navio, provocado pelo vento e pela corrente. Ainda assim, o cálculo da latitude trouxe uma enorme evolução à náutica astronómica portuguesa, pois transformou uma arte numa técnica.

 

Para determinação da posição do navio na carta de marear, associando o rumo e a distância percorrida ao valor da latitude obtida por observação dos astros (ponto de esquadria), havia a considerar três situações (Fig. 7):

 

(1) Quando o rumo formava um ângulo inferior a 4 quartas (< 45 graus) com a direcção norte-sul, a posição do navio resultava da intersecção do rumo com o valor da latitude obtida a partir da observação do astro, desprezando-se a distância avaliada pelo piloto;

 

(2) Quando o rumo formava um ângulo superior a 4 quartas (> 45 graus) com a direcção norte-sul, obtinha-se a posição do navio por recurso à latitude, conjuntamente com a distância avaliada pelo piloto, desprezando-se o rumo. Esta constituía também uma forma de avaliar o abatimento provocado pela acção conjunta do vento e da corrente;

 

(3) Quando o rumo formava um ângulo de 4 quartas (45 graus) com a direcção norte-sul (045º, 135º, 225º e 315º), determinava-se a posição do navio recorrendo à latitude, efectuando, graficamente, uma espécie de média entre o rumo e a distância. Neste último caso, apresentam-se, igualmente, os pontos de esquadria que resultariam da aplicação dos critérios enunciados em (1) e (2).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig. 7 - Como o ponto de fantasia dava origem ao ponto de esquadria, em função do rumo (R).

 

A partir de 1473, quando os pilotos portugueses exploraram a costa ocidental africana para Sul da linha equinocial, perderam de vista a estrela Polar, escondida abaixo do horizonte. Como, nessas circunstâncias, não podiam determinar a latitude por recurso ao cálculo astronómico que conheciam, cometeram grandes erros de posicionamento quando, de forma expedita, passaram a converter, em graus de latitude, as distâncias percorridas, usando o módulo de relação entre milhas e graus. Note-se que, para o valor do grau do meridiano terrestre, essencial à medição das distâncias nas cartas-portulano, só pouco depois da conquista de Ceuta (1415) se verificou a alteração do módulo de 56 2/3 milhas por grau, para o módulo de 66 2/3 milhas por grau. Em 1424, este último valor foi utilizado na carta manuscrita sobre pergaminho elaborada por Zuane Pizzigano, mais consentâneo com a experiência náutica adquirida pelos pilotos portugueses nas navegações atlânticas. Ainda assim, apresentava um erro, por defeito, na ordem dos 11%. No entan-to, o novo módulo possibilitou a conversão, com maior rigor, das distâncias das rotas em graus e latitudes, mais adequadas à realidade geográfica da região do globo praticada pelos navios portugueses no primeiro quartel do século XV.

 

A consciência relativamente à dimensão e inconveniência dos erros antes referidos, esteve na base de um longo período de especulações e ensaios científicos. Deles resultou o estabelecimento da quarta fase da náutica astronómica portuguesa, caracterizada pelo uso do astrolábio para medição da altura meridiana do Sol, necessária ao cálculo da latitude no mar, adaptando e simplificando os procedimentos utilizados pelos astrónomos e cosmógrafos nas observações terrestres. Na realidade, os tratados medievais dos séculos VIII e IX já ensinavam a determinar a latitude a partir da altura meridiana do Sol, entrando com o valor da declinação astronómica deste astro. As adaptações e simplificações então realizadas, consistiram em: conferir alcance às regras disponíveis para atender às situações diversificadas das navegações; testar, na prática, as regras que os tratados astronómicos preconizavam; calcular os valores da declinação solar, para que esta pudesse ser utilizada em regras ao alcance dos conhecimentos práticos e rudimentares da maioria dos pilotos. Da resolução do primeiro problema foram encarregados os astrólogos Abraão Zacuto e Mestre Rodrigo de Lucena. Do segundo problema, foram incumbidos o Mestre José Vizinho e Duarte Pacheco Pereira. Do terceiro problema tratou Abraão Zacuto, que efectuou os cálculos da declinação do Sol para cada dia de um quadriénio, sendo um dos anos bissexto, valores que foram incluídos no Almanach Perpetuum, como adiante se explica.

 

Com o recurso à observação dos astros para determinar a latitude em ambos os hemisférios, à noite pelas estrelas e, de dia, pelo Sol, passou a ser possível corrigir, com alguma precisão, o caminho Norte-Sul dos navios. Esta capacidade revelar-se-ia fundamental para os portugueses durante todo o século XV, em virtude das suas navegações, em busca da passagem para o Índico, consistirem, essencialmente, numa progressão feita em latitude. Com este progresso ficou firmemente estabelecida a técnica de navegação oceânica portuguesa, apoiada em três factores essenciais: conhecimento dos agentes físicos do Atlântico; navios com boas qualidades náuticas; e uma náutica astronómica fundamentada nos regimentos da estrela Polar e do Sol.

 

Como se compreende, os progressos da náutica astronómica portuguesa tiveram repercussões nas cartas-portulano. O primeiro impacto deu-se quando essas cartas passaram a ter implantada uma escala de latitudes, tornando-se híbridas, na medida em que procuravam conjugar os requisitos do ponto de fantasia (isogonalidade), com as exigências das posições obtidas mediante o ponto de esquadria (isogonalidade e distâncias). Nestas circunstâncias, se o traçado do rumo se fazia entre pontos determinados por observações astronómicas, as cartas-portulano perdiam a sua validade, salvo quando se navegava em regiões próximas da linha equatorial, onde a representação da superfície esférica terrestre no plano não apresenta deformação substantiva dos ângulos e das distâncias. O segundo efeito dos progressos da náutica astronómica portuguesa na cartografia, foi a correcta implantação da linha equatorial que, até ao final do século XV, em conformidade com a ideia de Ptolomeu, se pensava distar 16 graus para Sul da mais setentrional das ilhas Canárias, passando sobre o saliente africano de Cabo Verde. Só no final do século XV, após o traçado perfeito do Equador nas cartas náuticas e da adopção da medida de 75 milhas por grau do meridiano terrestre9, foi possível estimar, com maior rigor a latitude de uma posição contada desde a linha equatorial, que depois era convertida em graus, através das distâncias medidas em milhas na carta. Ainda assim, subsistiu um erro, por defeito, de cerca de 7%.

 

A náutica astronómica veio mostrar claramente que as cartas-portulano não eram adequadas ao novo processo de cálculo da posição dos navios no mar, em virtude de esta obrigar à existência de uma escala de latitudes. Além disso, para que se pudesse utilizar correctamente essa escala, era necessário fazer corresponder, a cada local na superfície da Terra, uma latitude obtida a partir de observações astronómicas. Tal facto desencadeou a terceira e mais significativa repercussão dos progressos da náutica astronómica portuguesa na cartografia, que consistiu no levantamento, por latitudes, das regiões costeiras. Neste trabalho, que parece ter sido iniciado cerca de 1485, envolveram-se os principais cosmógrafos e hidrógrafos portugueses, nomeadamente Mestre Rodrigo de Lucena, Mestre José Vizinho e Duarte Pacheco Pereira que, conforme refere Teixeira da Mota10, «efectuaram então febrilmente o primeiro levantamento moderno, por latitudes da costa africana», legando-nos uma obra primorosa, que se pode reconstituir pelo Esmeraldo de Situ Orbis e pela Carta de Cantino, que é, sem dúvida, o mais famoso exemplar da cartografia portuguesa quinhentista e uma marca incontornável do início do seu apogeu.

O contributo de Abraão Zacuto para o cálculo da latitude no mar teve, igualmente, uma utilidade decisiva no levantamento por latitudes da costa africana. Com efeito, mediante a altura do Sol, era possível calcular a latitude do lugar, no mar ou em terra, utilizando as correcções fornecidas por tábuas de declinação do Sol, incluídas no Almanach Perpetuum e referidas ao meridiano de Salamanca. Estas tábuas apresentavam a distância angular do Equador celeste ao Sol (declinação) correspondente ao meio-dia, cujo valor era obtido por cálculos matemáticos baseados em observações astronómicas. A operacionalização prática deste método, que teve uma influência determinante na náutica astronómica portuguesa, ficou a dever-se ao Mestre José Vizinho, com a tradução do Almanach Perpetuum para latim e castelhano, originalmente escrito em hebraico. Esta tábua solar única podia ser utilizada em anos comuns e bissextos, tendo servido nas viagens de Diogo Cão (1482-1486), Mestre José Vizinho (1485) e Bartolomeu Dias (1487-1488). O Mestre José Vizinho redigiu, ainda, o Regimento do Astrolábio e do Quadrante, amplamente utilizado nas navegações portuguesas, como manual de navegação e almanaque náutico, constituindo o último grande progresso das técnicas náuticas no primeiro período da estratégia 3C (1415-1487).

 

A determinação em chegar à Índia pela rota do Cabo levou a que, anos mais tarde, surgissem as tábuas quadrienais de declinação do Sol, elaboradas por Abraão Zacuto para a primeira viagem de Vasco da Gama em 1497-1498. Estas tábuas, mais exactas que a tábua solar única, referiram-se ao período 1497-1500, mas foram igualmente utilizadas nas viagens subsequentes. Posteriormente, foram calculadas por eminentes cosmógrafos portugueses novas tábuas quadrienais da declinação do Sol. Entre eles destaca-se Pedro Nunes que, no seu Tratado em Defensam da Carta de Marear (1537), apresentou as tábuas do quadriénio 1537-1540, usadas por D. João de Castro na viagem relatada no seu Roteiro de Lisboa a Goa (1538).

 

Tendo em conta a configuração dos astros no céu do Atlântico Sul, foram realizados esforços no sentido de regimentar o Cruzeiro do Sul, para que os pilotos pudessem determinar, à noite, a latitude por onde navegavam naquele hemisfério. Em 1507, Pêro Anes e João de Lisboa executaram essa tarefa, que marca a quinta fase da náutica astronómica portuguesa. Para isso, e depois de várias tentativas, aqueles pilotos escolheram a estrela Crucis ou Crux, ou estrela do Pé do Cruzeiro, como então era designada, para calcular a latitude aquando da sua passagem meridiana superior. Em conjunto com a elaboração das tábuas quadrienais da declinação do sol, traduzem os dois maiores progressos das técnicas náuticas portuguesas durante o segundo período da estratégia 3C (1487-1509).

 

Por esta época, e após a chegada ao Índico, provavelmente influenciados pelo kamal utilizado pelos navegadores árabes, os portugueses desenvolveram um novo instrumento para a obter a altura dos astros a bordo. Construído em madeira, era de simples utilização e permitia realizar as observações astronómicas com maior rigor. Ficou conhecido como balestilha, tendo sido o primeiro instrumento cuja referência é o horizonte, a exemplo do que veio a suceder, mais tarde, com os chamados instrumentos de dupla reflexão, como o octante e o sextante.

 

A náutica astronómica portuguesa conheceu ainda outros dois desenvolvimentos importantes, em termos do aumento das possibilidades de determinação da latitude do navio. Contudo, não comportaram consequências de maior para a cartografia náutica coeva. O primeiro progresso resultou do facto de os pilotos terem passado a recorrer à altura meridiana de outras estrelas com declinação conhecida, para assim calcularem a latitude em que se encontravam. Conforme refere Luís Albuquerque11, esta prática tinha sido aconselhada num texto antigo incluído no Reportório dos Tempos, de Valentim Fernandes. Não obstante, aquele historiador considera duvidoso que esta tenha sido posta em prática antes de João de Lisboa. De acordo com o mesmo autor, no Livro de Marinharia atribuído a este piloto, são referidas seis estrelas que podiam ser usadas com aquela finalidade. Também indica que esse número é consideravelmente alargado num texto manuscrito do cosmógrafo Manuel Lindo, anterior a 1550, tal como sucede no Regimento Náutico de João Baptista Lavanha (1595), onde, para além das estrelas, se encontram explicados os procedimentos a efectuar para o cálculo das latitudes a partir das respectivas alturas meridianas. O segundo progresso resultou dos trabalhos de Pedro Nunes. Este avanço encontra-se explicado no Tratado da Sphera, onde o grande cosmógrafo utiliza a poma para obter a latitude, a partir de duas alturas extra-meridianas do Sol e dos azimutes magnéticos da observação. Este método foi experimentado por D. João de Castro na sua viagem à Índia em 1538, quando efectuou uma observação sistemática do magnetismo. Para além de ter concluído que a declinação magnética não variava de forma proporcional com a longitude, demonstrando, assim, que não fazia qualquer sentido continuar a buscar uma relação (altura leste-oeste) entre estas duas grandezas independentes, esclareceu que a distância excessiva apresentada nas cartas, entre a costa do Brasil e o Cabo da Boa Esperança, se devia ao desacerto entre os rumos magnéticos e os rumos verdadeiros. Nesta sua primeira viagem à Índia, D. João de Castro identificou, igualmente, o fenómeno conhecido como desvio da agulha, que é o ângulo formado entre o Norte da agulha e o Norte magnético.

 

Nos fins do primeiro quartel do século XVI foi adoptada a direcção do Norte verdadeiro como eixo de orientação das cartas, pelo que o meridiano do lugar adquiriu importância na determinação da posição do navio. Por seu turno, a longitude surgiu por força da graduação do Equador em graus idênticos aos dos meridianos, tendo sido inicialmente designada por altura de leste-oeste. Doravante, as cartas náuticas passaram a ser construídas com base nas coordenadas ortogonais da latitude e da longitude, traduzidas numa quadrícula de paralelos e meridianos, traçados de cinco em cinco ou de dez em dez graus, de forma a apresentar lados iguais. Apareceram, assim, as cartas planas quadradas, denominação um tanto ambígua, dado que todas as cartas, qualquer que seja o seu sistema de construção, estão representadas num plano. Não obstante, importa notar que a quadrícula implantada na carta foi uma consequência da introdução das escalas de latitudes e longitudes. Na realidade, tal não passou de um artifício teórico-matemático, uma vez que não favoreceu o traçado mais correcto da carta, dada a impossibilidade que havia em calcular a longitude a bordo de forma distinta da estimada. Com efeito, dotada de soluções adequadas para o cálculo da latitude, a náutica astronómica portuguesa nunca conseguiu encontrar uma solução para o problema da determinação da longitude, coordenada essencial para a fixação rigorosa de um ponto na superfície da Terra.

 

Embora incapaz de determinar a longitude, a náutica astronómica portuguesa foi responsável pela evolução da cartografia portulana para a cartografia de latitudes e, posteriormente, para a cartografia plana quadrada, processo que abriu caminho à cartografia matemática, que Pedro Nunes começou a desvendar no Tratado em Defensão da Carta de Marear. Para além disso, foi essencial ao terceiro período da estratégia 3C, porque conferiu mais rigor e segurança à navegação e viabilizou uma representação geográfica da Terra mais precisa. Por isso, no início do século XVI os navios portugueses puderam cruzar o Atlântico em todas as direcções. Os Cortes Reais foram à Terra Nova, Vasco da Gama chegou à Índia e Cabral aportou ao Brasil onde, logo a seguir, Gonçalo Coelho efectuou um monumental levantamento hidrográfico costeiro. Em 1509, D. Francisco de Almeida venceu a batalha naval de Diu, que deu o domínio do Índico aos portugueses. Dois anos depois foi explorada a Insulíndia e Afonso de Albuquerque conquistou Malaca (1511), um importante entreposto comercial do sudoeste asiático. A partir desta base de implantação, diversos pilotos portugueses realizaram o levantamento sistemático da hidrografia do extremo Oriente, com objectivos essencialmente mercantis, que, por sua vez, abriram caminho à chegada à China em 1513 e a Tanegashima, no Japão, em 1543.

 

In: http://www.revistamilitar.pt/artigo.php?art_id=667 (14/05/2014)

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